sexta-feira, 13 de abril de 2012

Trecho do Livro: Resistência - A história de uma mulher que desafiou Hitler - Agnes Humbert

Livro: Resistência



Krefeld, 31 de dezembro de 1942

O Natal passou. Não nos demos conta dele. Trabalhamos oito horas. O cotidiano não foi suavizado, por exigência expressa do diretor de Anrath, que se recusou a aceitar pequenas guloseimas que uma instituição de assistência a prisioneiros queria nos enviar. Nessa noite, eu operava a máquina com minha querida Gerda Vossing. Estávamos alegres, pois desejávamos encerrar bem o ano. O guarda meu amigo aproximou-se de nós para me dizer bem rápido:

— Isto não pode mais continuar, tentem fugir, encontrem um jeito! Se surgir a oportunidade, meu nome é Erb, moro na Spinneristrasse, 29. Ninguém irá procurá-las lá...

Nem pude responder, de tão emocionada, tão pasma, com tamanha bondade, tamanha generosidade. De longe, nosso colega Daniel, o último tecelão civil belga deste turno, observa a cena, e assim que meu amigo se afasta, Daniel corre para mim:

— O que aquele safado queria? Aposto que estava enchendo você.

Daniel vive querendo nos proteger, ainda que este bom rapaz esteja cansado de saber que nada pode fazer por nós além de nos presentear com seu bonito sorriso e um aperto de mão quando não há ninguém por perto.



Eu o tranqüilizo. O guarda só veio me desejar feliz Ano-Novo. Sim, um feliz Ano-Novo. Na verdade, jamais um homem me deu um presente de fim de ano igual! Erb sabe muito bem que me esconder significa arriscar a própria vida...

Discutimos um bom tempo, Henriette e eu, a proposta de Erb. A salvação é possível. Três alemãs partiram semana passada, mas o ato nos valeu, apesar do frio, o confisco de nossos casacos da fábrica, pois à noite nossas blusas brancas são mais fáceis de serem localizadas. No momento, em pleno janeiro, saímos para tomar a sopa da meia-noite encharcadas de suor. Estamos sob uma fina camisa de seda artificial. A tosse de Henriette é de rachar o peito. Chego a pensar que ela está seriamente enferma.

Debatemos o mistério Erb. Desde que viemos parar nas "mãos deles", já vimos tantas armadilhas, que nos perguntamos se esta não será mais uma. Não! Rejeito essa idéia. Não quero macular a extraordinária generosidade desse homem com um pensamento vil. Não vou, contudo, aceitar sua oferta. Estou doente demais para encarar o esforço de uma fuga. Depois, se me salvo, quem sabe acabam pegando Pierre em meu lugar. Não, o vinho está servido, cabe bebê-lo. "Depois da chuva, o sol há de brilhar", dizíamos a nós mesmos antigamente, quando cantávamos La Jeune garde. Sim, logo o sol irá brilhar. Como nos disse Armand Schmidt, no camburão de Düsseldorf, é preciso "engolir em seco". Tomara que as minhas forças durem até o final do meu encarceramento!

É idiota, mas esta ferida no pé influi no meu estado geral de saúde. Praticamente não durmo mais, o pé e o tornozelo estão inchados. A guardiã, Fräulein Dross, não vê serventia em me levar ao posto de saúde.

Krefeld, 15 de janeiro de 1943

Sem dúvida há mudanças "lá fora", pois o regulamento, da noite para o dia, se tornou muito mais rígido. Os guardas da fábrica agora andam armados de fuzil. Meu pobre Erb tem cara de não saber o que fazer com ele. Um SS acompanha os guardas e vem nos buscar diariamente para nos escoltar ao trabalho. Ele me dá muita pena, pois se parece com Louis Jouvet. É triste vê-lo enfiado neste uniforme! O SS conta as mulheres na saída de casa. A fim de não se confundir, ele nos belisca o braço, de passagem, de preferência machucando a carne.

No meio da sala de máquinas, acabam de construir uma guarita de concreto armado, uma espécie de torre fortificada com seteiras da qual é possível controlar a sala toda com uma simples metralhadora. Uma construção similar também surgiu no pátio e em todas as dependências da fábrica. Estou muito feliz, pois estes sinais são precursores de revolta. Correm rumores de motins...

Maria B., jovem comunista alemã de um outro turno, acaba de ser enviada para Anrath, para a solitária. Vai se divertir um bocado! Está sendo punida por ter dado a boa notícia do cerco às tropas alemãs na Rússia. Onde terá ocorrido esse cerco? Ninguém sabe ao certo, mas todo mundo fala disso. A alegria me leva a dançar, corremos de uma máquina a outra; umas ouviram dizer que se trata de dez divisões, outras, de cem, mas como não sabemos em que consiste uma divisão, continuamos mal informadas. De fonte alemã, fala-se à boca pequena do começo do fim. Uma vez mais, dou piruetas como uma doida, apesar da dor sempre lancinante que sinto no pé. Houben me vê, chama um de seus ajudantes, os dois me observam enquanto imito uma bailarina. Henriette manda, aos gritos, que eu sossegue. Tarde demais! Eles me viram. Tanto pior!

É, tanto pior. Houben chegou e me disse que, como sou jovem o bastante para dançar, também sou jovem o bastante para operar sozinha uma máquina. Ainda que não tenha dançado, Gerda Vossing também trabalhará sem ajuda. Ficamos arrasadas.

Já faz 15 dias que opero sozinha a minha máquina, com as mãos e os braços queimados pelo ácido e pela viscose. Meu pé não me dá descanso. Os carrinhos parecem muito pesados de empurrar; as bandejas de seda, muito difíceis de erguer. Na máquina, tudo racha e se quebra, e me irrito mais do que as palavras são capazes de expressar. Eu, que não sabia o que era chorar, aprendi aqui. Diariamente, na saída do trabalho, as lágrimas escorrem pelo meu rosto. Não sinto vergonha, nem tenho o pudor de disfarçar. Henriette me conduz, faz e desfaz minha trouxa de roupas civis no vestiário, pois o estado dos meus dedos me impede de desamarrar um barbante. A dedicação de Henriette é espantosa! Só tenho um consolo: saboto o melhor que posso. Quando uma "torta" se mostra particularmente bem-feita, eu a esfrego com força na bandeja. Enquanto está molhada, ninguém é capaz de ver que a seda não é perfeita. Quando secar, os fios estarão eriçados e impossíveis de desembaraçar. Também tenho uma boa artimanha, que ponho em prática com freqüência, que consiste em quebrar as rodas dentadas sob a máquina e deixar determinados panelões inutilizáveis o dia todo, no mínimo, pois o mecânico tem muito a fazer e felizmente não costuma estar disponível. Quando consigo sucesso numa sabotagem, sinto o coração mais leve. É uma espécie de cerimônia expiatória... perante a minha consciência. Sei muitíssimo bem agora que a seda que tecemos serve à guerra, os retalhos de seda vão para os explosivos, a seda para o tecido dos uniformes, da roupa íntima e dos pára-quedas. Eu que me proibi de trabalhar em prol da guerra... Onde foram parar minhas nobres decisões? Mas como resistir? Sei muito bem que os soldados de todos os países, sejam eles russos, franceses ou iugoslavos, trabalham direta ou indiretamente para a matança. Os operários na França trabalham em prol de quem, de quê? Somos milhões, dezenas, vintenas de milhões de escravos...

Meu pé dói cada vez mais, o inchaço aumenta, a cor se torna sinistra e o odor, infecto. Finalmente concordam em me levar ao posto de saúde. Herr Scherer, o enfermeiro, a nata dos corajosos, exige, com a perplexidade estampada no rosto, me ver diariamente.

O "agente de saúde" do outro turno diz que meu pé corre risco e que não pode mais cuidar dele sem a orientação de um médico. Minha fraqueza é extrema e, para falar a verdade, estou impressionada com o que aconteceu com a minha cara amiga Gerda Vossing. Ela não pode operar sozinha a máquina, seus nervos estão à flor da pele. Vejo chorar esta mulher sem parar; em outros tempos, era tão alegre, tão forte. Suas mãos e seus braços são um conjunto de feridas. Ela desmaia várias vezes ao dia. Ontem teve um ataque: seu lado direito ficou paralisado. De uma hora para outra, Gerda não pode mais "lhes" servir. Levam-na embora. Ela parte para o hospital numa maca. Para isso é preciso estar nas últimas! Ouço as alemãs dizerem que logo será a minha vez. As frases milenares das lamentações bíblicas afloram inconscientemente aos nossos lábios... "Até quando, Senhor, até quando?" Os mesmos sofrimentos clamam pelas mesmas palavras. Tenho agora a covardia de pensar, com uma certa inveja, nos companheiros que dormem em paz para sempre no cemitério de Ivry! Vildé, Lewitsky, Nordmann, Walter, o jovem René, Ithier, Andrieu... Vocês não lutam mais, vocês ganharam o repouso merecido, estão em paz...

E hoje, recebi uma carta de casa... O filho de Friedmann teve coqueluche, meu neto tem dois dentes, Jean e Monique foram esquiar no Haute-Savoie. Acontecimentos de todo tipo são tão distantes que para mim parecem envoltos numa bruma espessa. Será uma bruma de indiferença? Temo muito que sim!

Ontem, voltei a desmaiar na rua ao sair de casa, mas parece que o SS mandou que me pusessem no ônibus, garantindo que o trajeto bastaria para que eu recobrasse os sentidos. No fundo, ele é quem tem razão, pois apesar de tudo cumpri meu expediente de oito horas. Quando se chega à fábrica, descortina-se um ambiente extraordinário: o barulho das máquinas, todas aquelas mulheres trabalhando como autômatos, todas aquelas engrenagens que giram, rodam, os funis que sobem e descem lentamente. Em tudo isso está presente um ritmo que embrutece. Nós nos fundimos a essa vida irreal, e trabalhamos quase da mesma forma como giram os dervixes rodopiantes. Somos dominadas, possuídas pela máquina, pelo seu odor e pela sua força...

Eu ainda estava meio adormecida hoje de manhã quando Tonton passou pela minha cama e viu minhas mãos. Ela é médica, e minhas mãos a interessaram.

— Puseram pomada ontem — disse ela —, eles exageraram...

Semi-acordada, respondo:

— Chegue mais perto, sua boba. Isto não é pomada, é pus.

Maria Dopsch, a tcheca, começou a se levantar dois minutos antes do final do seu expediente. O "controlador" a viu, pegou um panelão de ferro e aplicou dois golpes em sua cabeça. O primeiro abriu o supercílio, o segundo fez um ferimento de dez centímetros na nuca. Levaram Maria a um médico! O "controlador" foi parar em outro turno. Desta maneira, ele poderá fazer com que outras mulheres usufruam de seus princípios de pontualidade rigorosa!...

Toda noite, durante o último turno, tem havido sinfonia. Da janela do hall da escada, vê-se uma claridade vermelha, a luz dos obuses e dos holofotes deixa o céu listrado. Uma hora dizem que é Duisburg, noutra, que é Essen ou Düren que arde em chamas. Os incêndios já duram há tanto tempo, que nos perguntamos o que mais existe para queimar. O quê? Ora, a fábrica Phrix! Será que os aviadores anglo-americanos não sabem mirar? O alvo é bastante grande! Ainda na noite passada, puseram fogo com uma bomba incendiária num dos alojamentos das russas. Pobrezinhas, parece que ficaram enlouquecidas! Quanto a mim, durante todo esse tempo, estive totalmente cega, num canto da fábrica. A situação cheirava mal. Ninguém, Henriette inclusive, conhecia o meu paradeiro. Eu quase não conseguia andar sem ajuda. E se houvesse um incêndio, eu me perguntava, como fazer para escapar? Ainda bem — que sorte! — que as minhas mãos estavam um pouco melhor, e isso me permitiria encontrar, tateando, a saída...

Oito dias de inferno! Na segunda-feira, eu não conseguia levantar a cabeça. Conforme dizemos, "meus olhos estavam escorrendo para a boca". Sou levada até a máquina por Henriette. Siemens me manda contar as placas-filtros (é preciso contá-las na chegada, por medo que o operário que nos antecedeu as tenha roubado para se apossar do ouro ou da platina).

— Contar as placas-filtros? — rebato. — Mas como? O senhor está vendo que os meus olhos...

— Trate de contar seus filtros — insiste ele num tom trovejante, acompanhando a agressão verbal com um potente soco em minhas costas.

Perco o controle. O sofrimento é grande demais, e aos berros digo a ele que só um canalha seria capaz de bater numa mulher quase cega. À guisa de resposta, ele me agride novamente e diz que, para me "dar uma lição", vai me obrigar a trabalhar a noite inteira. Chama uma operária para fazer a envasilhagem e me designa como ajudante. Não consigo ver a pessoa que trabalha comigo. Não reconheço a voz da jovem, que deve ser novata. Ao longo de todo o turno, o sofrimento é atroz. Uivo como um lobo para a lua. A guardiã, que é bastante decente, me enche de aspirina no intervalo entre as levas. Chegando em casa, me enfio na cama, na qual permaneço, praticamente inconsciente, durante cinco dias e cinco noites. A médica passa para uma visita e, milagrosamente, a "Concon" pede que ela me examine. Explica meu caso, acrescentando que dois dos enfermeiros da fábrica afirmam que preciso de uma consulta de urgência, pois meu pé corre perigo. Parada a uma distância de dois metros da minha cama, a doutora me diz:

— Vão lhe dar um "remédio".

(Em outras palavras, um comprimido).

Descubro meu pé, mas nitidamente ele não desperta qualquer interesse na nossa dedicada médica, que sai batendo a porta. Nem preciso dizer que não recebi o comprimido prometido.

A natureza, que tão bem sabe gerir as coisas, me permitiu levantar da cama e voltar ao trabalho... Meu pé está melhor, o pobre coitado repousou...

A nova guardiã, Fräulein Jansen, me leva diariamente ao "agente de saúde", um homem bastante corajoso. Ontem me deu, escondido, um sanduíche. Nem ele nem os colegas se furtam de dizer o que pensam do tratamento que nos infligem. Meu pé, finalmente, melhorou bastante.

Não ouso mais me olhar no espelhinho do banheiro; pareço uma mulher de setenta anos. Estou encurvada, com a pele amarela — como a de todas as minhas companheiras —, os olhos encovados e emagreço a cada dia. O trabalho na máquina me parece mais duro a cada dia. A fábrica tem recebido muitas visitas, tanto de inspetores militares quanto de visitantes civis.

Um indivíduo, vestido "à paisana", passa diante da minha máquina, acompanhado de Houben, e entreouço este último comentar num tom de zombaria:

— É, esta é francesa... É avó, mas apesar disso tece! Deu um bocado de trabalho, mas chegou lá... Admito que sou, afinal, um sujeito espantoso para conseguir transformar uma avó em tecelã!

Cantarolo a velha canção pacifista do século XVI:

Quem fala da guerra

Sem saber do que se trata

Asseguro sinceramente

Que é algo lamentável...

Faz um mês lancei uma garrafa ao mar. Um belga, operário civil, decidiu me passar um pedaço de papel, um envelope e pôr minha carta no correio. Uma resposta me chega por seu intermédio: uma carta de Jean e Colette Duval contendo uma foto de Yves. Meus olhos, embora não doam muito, estão em mau estado. Não consigo decifrar as notícias tão esperadas. Vejo a silhueta do meu neto, mas não seus traços. Prevendo o recebimento de uma carta, confeccionei um bolsinho de tecido preto no avesso do meu vestido. Nele esconderei a minha preciosa missiva. Se a encontrarem, isso me custará quatro semanas de confinamento disciplinar em Anrath. Conheci várias mulheres que foram punidas por conta de cartas clandestinas. A cela do confinamento fica no térreo. É terrivelmente úmida. As "punidas" perdem a roupa de baixo e o casaco. À noite não dormem em colchão, de dia não recebem pão nem água, apenas duas sopas por semana. Quando voltam, quase sempre sofrem de artrite acompanhada de febre alta. No meu estado atual, quatro semanas de confinamento disciplinar significariam a morte. Essa certeza me obriga a ser prudente. Escondo minha preciosa carta e a imagem do meu neto desconhecido...

Li as notícias de Paris, decorei-as. Recito-as para mim mesma operando a máquina. Pierre Brossolette, a mulher e os filhos conseguiram chegar à Inglaterra. Jean Cassou está num campo de concentração na França. A mulher e a filhinha moram perto de Toulouse. Claude Aveline e Marcel Abraham vivem mais ou menos escondidos, bem como Friedmann. Aparentemente, todos correm perigo. A vida parece animada na França! Mas estão vivos, e logo nossas mazelas chegarão ao fim. A carta tem um forte tom otimista. Colette me conta sobre as pessoas que se interessam por mim, mas não as conheço. Como é estranho tudo isso! Ela faz algumas alusões, disfarçadas, que não entendo. Estou desatualizada. Ainda me lembro muito bem da minha primeira noite em "Cherche-Midi": "Aqui jaz Agnès Humbert, morta em 15 de abril de 1941." No fundo isso não é tão idiota quanto parece. Esse epitáfio que eu lia semi-adormecida corresponde à verdade. Uma parte de mim, a parte sentimental, terna, gentil, morreu naquele dia. Jamais poderei ser a mesma...

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